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sábado, 2 de outubro de 2010

Gandhi, em nome da paz


“Posso ser uma pessoa desprezível, mas quando a verdade fala em mim, sou invencível.”


Há 60 anos, a Índia se libertou do domínio inglês graças à luta de um homem que nunca aceitou a injustiça - e provou ao mundo que uma revolução podia ser feita sem armas

por Eduardo Szklarz
Silêncio na sala de aula. Começa o ditado. “Uma das palavras era ‘chaleira’, que eu escrevi errado. O professor tentou me avisar com a ponta da bota, mas não entendi que ele estava me dizendo para colar a palavra do colega ao lado. (...) O resultado foi que todos escreveram a palavra corretamente, menos eu, considerado estúpido. O professor procurou me alertar sobre minha estupidez, mas nunca consegui aprender a arte de colar. Mais tarde, soube de outras falhas cometidas por esse professor, mas minha admiração por ele nunca diminuiu.”
Com essa pequena história, narrada por Gandhi em sua autobiografia, talvez seja possível começar a entender quem ele era. Alguns dizem que ele foi um político muito religioso, outros o vêem como um religioso extremamente político. O mais provável é que tenha sido ambas as coisas: para Gandhi,religião e política eram dois lados da mesma moeda. Normalmente nos lembramos dele como o velhinho careca e seminu, tão frágil quanto seus óculos redondos, que há 60 anos botou o Império Britânico para correr sem precisar de fuzis ou canhões. Pouco se diz, entretanto, sobre como Gandhi desenvolveu essa estratégia e a capacidade de respeitar os outros, não importa o que fizessem (característica que lhe valeu o título de Mahatma – “grande alma”, em sânscrito).
Foi na África do Sul, onde viveu por mais de 20 anos, que Gandhi percebeu que o mundo podia ser mudado com a resistência pacífica. Depois, na Índia, tornou-se o principal líder do processo de independência.
Mas, como veremos, nem ele foi capaz unir um povo dividido por disputas políticas e intolerância religiosa.
Para inglês ver
Mohandas Karamchand Gandhi nasceu em 2 de outubro de 1869 na cidade indiana de Porbandar, filho de um político influente e de uma mulher muito religiosa – que costumava jejuar dias seguidos, seguindo um ritual hindu de purificação. Aos 13 anos, o jovem Mohandas se casou com Kasturbai, da mesma idade. Aos 18, foi estudar Direito em Londres. No início, se esforçou para ser um gentleman, pois achava que as roupas e os costumes ingleses lhe trariam sucesso. Com o tempo, porém, voltou-se à vida espiritual: passou a recitar de cor o Bhagavad Gita, um dos principais textos hindus. Também leu a Bíblia, adotando como lema os versos do Sermão da Montanha – aquele que diz: “Se vos esbofeteiam, oferecei a outra face”.
Em 1891, o advogado Gandhi voltou à Índia. Por causa da timidez em falar em público, sua carreira não engrenava. Mesmo assim, foi convidado para ajudar a defender uma firma de comércio indiana num processo na África do Sul – assim como a Índia, uma colônia do Império Britânico. Nem bem pisou o solo sul-africano, em 1893, Gandhi sentiu na pele a discriminação contra “homens de cor”. Durante uma viagem, foi jogado de um trem por se recusar a sair da primeira classe, exclusiva para brancos. Era um exemplo claro de que, mesmo que se vestisse como um inglês e tivesse estudado em Londres, ele nunca poderia ser livre numa colônia.
Após um ano na cidade de Pretória, o trabalho de Gandhi terminou. Mas ele decidiu ficar e lutar pelos direitos de seus conterrâneos que viviam na África do Sul – a maioria deles trabalhadores rurais. Em 1894, por exemplo, Gandhi percorreu o país reunindo milhares de assinaturas contra um projeto de lei que impedia os indianos pobres de votar. A medida foi aprovada do mesmo jeito, mas a atitude virou manchete na imprensa européia.
Em 1906, pai de quatro filhos, Gandhi fez um voto celibatário. O objetivo era aumentar o autoconhecimento e se aproximar de Deus. No mesmo ano, lançou a doutrina do satyagraha (ou “força da verdade”). Gandhi dizia que seu método exigia muita ação e coragem – contrariando uma idéia comum, ele não pregava a “resistência passiva”. O pilar fundamental é a não-violência: protestar sempre, revidar nunca (muitas vezes, isso significava apanhar quieto da polícia). A regra era se recusar a seguir leis injustas, seguindo o princípio da “desobediência civil”.
O satyagraha estreou contra uma lei feita para controlar imigrantes, que obrigava os indianos a se registrar com impressões digitais. Gandhi reuniu seguidores num teatro e declarou: “Por meio da nossa dor, nós os faremos perceber sua injustiça. Podem me torturar e até me matar. Terão meu corpo, não minha obediência”. Como o governo não revogou a lei, Gandhi queimou seus registros e foi preso. Sempre que era levado a julgamento, acusado de desafiar o domínio colonial, Gandhi dizia que era isso mesmo que ele estava fazendo. Em vez de tentar escapar da prisão, concordava que merecia a pena máxima. Mas, como suas prisões geravam protesto, Gandhi costumava ser solto rapidamente.
O principal rival de Gandhi era o general Jan Christian Smuts, administrador da África do Sul. Aos poucos, contudo, ele foi conquistado pelo teimoso indiano. “Nunca o vi deixar-se contaminar pelo ódio. Seus métodos me irritavam, mas reconheço que minha situação era difícil. Eu tinha que aplicar uma lei que não contava com respaldo popular. Quando foi embora da África do Sul, me deu sandálias que ele mesmo tinha feito. Eu as devolvi: não me considerava merecedor de usar o mesmo calçado de um homem tão grande”, escreveu Smuts em 1939.
Volta para casa
Em 1914, Gandhi voltou à terra natal. Graças à repercussão de sua atuação na África, logo se tornou um dos líderes do movimento pela independência da Índia. Mas ele percebeu que não seria fácil convencer os grupos religiosos do país a se unirem para lutar de modo pacífico. Naquela época, os indianos estavam divididos em 300 milhões de hindus, 100 milhões de muçulmanos e 6 milhões de sikhs. Unidos pela revolta contra os ingleses, eles tinham muitas diferenças entre si.
No início de 1919, Gandhi evocou a resistência não-violenta contra leis que davam aos ingleses poderes ilimitados contra a oposição. O movimento virou uma greve geral que paralisou o país, mas descambou para a violência. Gandhi então interrompeu a ação e começou um período de jejum para expiar sua culpa e se opor ao derramamento de sangue. No dia 13 de abril, tropas inglesas reprimiram a tiros uma multidão que protestava pacificamente na cidade de Amritsar, matando cerca de 400 pessoas e ferindo 1100. Depois do massacre, Gandhi interrompeu a cooperação com os britânicos. Começou mudando a própria imagem: raspou totalmente o cabelo e nunca mais usou trajes que não fossem vestimentas indianas tradicionais. Incitou o povo a fabricar suas roupas em casa e parar de comprá-las da Inglaterra – ele mesmo dava o exemplo, fazendo tecido com sua roca.
Os protestos arrancavam concessões dos britânicos, mas a independência ainda parecia distante. Em 1930, Gandhi inovou: em vez de fazer jejum, resolveu queimar algumas calorias numa marcha. Seguido por milhares de indianos, caminhou quase 400 quilômetros rumo ao mar da Arábia para fazer sal. Aparentemente banal, o ato era uma violação do monopólio britânico sobre a fabricação do produto. Indianos de todo o país seguiram o exemplo, vendendo sal nas ruas. A repressão prendeu desde políticos até pessoas comuns. Com as cadeias lotadas, o vice-rei lorde Irwin, governante inglês da Índia, se dispôs a negociar. Em 1931, foi quebrado o monopólio sobre o sal. Sinal de que a independência seria questão de tempo.
Sonho partido
Enquanto dobrava os britânicos, Gandhi não conseguia conter os radicais hindus e muçulmanos, que realizavam atentados terroristas. Durante a Segunda Guerra, iniciada em 1939, a tensão cresceu. Gandhi disse que a Índia só apoiaria a Inglaterra se, ao fim do conflito, ganhasse a independência. Não houve acordo. O líder prosseguiu com seus protestos e foi preso em 1942. Dois anos depois, com a rivalidade entre hindus e muçulmanos beirando o caos, Gandhi começou a jejuar contra as hostilidades. Com medo de que ele morresse, os grupos rivais se acalmaram.
Gandhi voltou a comer, mas logo a violência recomeçou. Em maio, sofrendo de malária, ele foi solto pelos ingleses. Tentou, então, fazer com que os radicais hindus depusessem as armas. Fracassou. Por meio de cartas, tentou convencer Mohammed Ali Jinnah, maior líder muçulmano da Índia, a apoiar a criação de um só país após a independência. Mas ele tinha outros planos: exigia a divisão do território e a criação de um país islâmico, o Paquistão (ou “terra dos puros”).
Após a Segunda Guerra, a Inglaterra estava frágil demais para manter sua maior colônia. Em março de 1947, desembarcou na Índia Louis Mountbatten, nomeado o último vice-rei. No dia 1º de abril, Gandhi se reuniu com ele e propôs que a colônia virasse um país só. Mal sabia que seu discípulo Jawaharlal Nehru, um dos líderes do Partido do Congresso, já havia dito a Mountbatten que os hindus, assim como os muçulmanos, preferiam a divisão.
Em 14 de agosto, o Paquistão declarou sua independência. À 0h do dia seguinte, a Índia fez o mesmo. Nehru virou primeiro-ministro da Índia e Jinnah assumiu o poder da nação vizinha. Gandhi nem foi aos festejos. Tinha 78 anos e viu que era tempo de dedicar-se à vida religiosa. Em 30 de janeiro de 1948, por volta das 5 da tarde, quando chegava para rezar num jardim de Nova Délhi, Gandhi foi morto a tiros por um extremista hindu. Suas últimas palavras foram “He Ram” – “Oh, Deus” no dialeto devanagari.
Gandhi foi logo transformado em mártir. Mas, recentemente, sua imagem intocada se tornou alvo de críticas. Em um artigo na revista americana Time, em 1998, o escritor anglo-indiano Salman Rushdie citou o filme Gandhi como exemplo da “santificação ocidental não-histórica” do personagem: “Lá estava Gandhi, como guru, provendo esse produto da moda, a sabedoria oriental. Gandhi como Cristo, morrendo para que os outros pudessem viver”. Segundo Rushdie, o culto ao líder parece insinuar que sempre é possível ganhar a liberdade sendo mais ético que o opressor, o que nem sempre ocorre. No fim da vida, o próprio Gandhi reconheceu que a não-violência talvez não tivesse adiantado contra os nazistas.

Com a razão, contra a lei

Entenda o princípio da desobediência civil
Quando fazia seus protestos, Gandhi estava colocando em prática uma idéia do século 19. A paternidade do conceito de desobediência civil é atribuída ao pensador americano Henry D. Thoreau. Segundo ele, se uma lei fosse “flagrantemente injusta”, você poderia desobedecê-la. No século 20, o filósofo americano John Rawls definiu a desobediência civil como “um ato público, não-violento, contrário à lei e usualmente feito para produzir uma mudança na lei ou em políticas de governo”. Mas o que isso significa? Em primeiro lugar, que a desobediência civil não significa desprezo às leis em geral. “Você tem consciência de que está desrespeitando uma lei porque deseja outra melhor. E, mesmo desobedecendo essa lei, continua disposto a se expor às suas conseqüências”, diz o cientista político Cicero Araujo, da Universidade de São Paulo. “Todo ato de desobediência civil também precisa ser previamente avisado.” Gandhi cumpria à risca essas condições: declarava-se leal à Constituição inglesa, sempre avisava antes de cada campanha e nunca resistia ao ser preso. Ao atuar abertamente, Gandhi diferenciava suas manifestações de atos criminosos (quando um ladrão rouba, ele faz isso escondido porque não pode justificar sua ação publicamente). A desobediência civil só pode ser feita contra leis que boa parte da sociedade ache injustas. Um bom exemplo foi a legislação racista do sul dos Estados Unidos, combatida nos anos 50 e 60 pelo pastor Martin Luther King – que agia da mesma forma que Gandhi e deixava a polícia numa sinuca: como pode ser certo usar de violência para reprimir manifestações pacíficas? “‘Civil’ vem da idéia de civilizado, em contraponto ao armado”, diz Araujo. Para quem quiser tentar, um aviso: a desobediência civil só funciona em países que se comprometem com o valor das leis – em ditaduras, ela não faz sentido.

Irmãos em luta

Separados, Índia e Paquistão se tornaram rivais
A maior derrota sofrida por Gandhi foi a divisão da Índia, em agosto de 1947. Jawaharlal Nehru, um dos líderes do Partido do Congresso e discípulo de Gandhi, passara muito tempo defendendo a unidade do país, mas acabou temendo o que aconteceria com os hindus se o governo fosse assumido pela minoria muçulmana. Já Mohammed Ali Jinnah, líder da Liga Muçulmana, nunca abandonou a idéia de criar de um Estado islâmico separado da Índia, o Paquistão. “Para ele, era legítimo o direito de secessão das zonas em que a identidade muçulmana era majoritária”, diz o italiano Francesco D`Orazi Flavoni no livro Storia dell´India (“História da Índia”, sem tradução no Brasil). Jinnah costumava dizer que a Índia não era uma nação, e sim um subcontinente habitado por nacionalidades, das quais as duas principais eram a muçulmana e a hindu. A divisão prevaleceu, mas não houve uma separação cirúrgica. De repente, milhões de pessoas estavam “do lado errado” e precisavam cruzar centenas de quilômetros para chegar a seu novo país. Muitos nunca chegaram. Segundo a pesquisadora indiana Sunil Khilnani, da Universidade de Carleton, no Canadá, a divisão provocou o deslocamento de algo entre 12 milhões e 16 milhões de pessoas, além da morte de cerca de 1 milhão em conflitos. As divergências entre os dois lados tampouco desapareceram com a independência. Índia e Paquistão se enfrentariam em três guerras (1947-1948 e 1965, pelo controle da Caxemira, e 1971, quando o Paquistão Oriental se tornou Bangladesh) e desenvolveram armas nucleares.
http://historia.abril.com.br/religiao/gandhi-nome-paz-435497.shtml

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